Janeiro, 2010

As árvores neste verão têm o roxo da semana santa
E pássaros chapados que sugam seivas poluídas
Crianças arremessam sapatos e pedaços de pipas agonizantes que se enroscam nos galhos e nos fios elétricos
E chacoalham com o vento úmido e quente das nuvens que, sujas de carvão, desabam em aguaceiros
 
A TV nos informa que a desgraça é sempre maior do lado de fora
E nos retém em ventiladores que não substituem a brisa paulistana que já não sopra nesta época do ano
 
Os cães farejadores da minha rua esquálidos vira-latas buscam sobreviver remexendo caixas de pizza que se esparramam pelas calçadas
Enquanto o Brasil envia cães farejadores ao Haiti para buscar sobreviventes esquálidos que se esparramam como lixo nas calçadas
 
O verão é aqui
Vejo bundas bicos pelos chinelos
Ouço risos sambas surdos apitos
Sinto febre transpiro suo
Observo o movimento da rua
 
Há uma gordura no ar que se agarra à pele
E reflexos como cacos de vidro espetando os olhos
 
Vizinhos envelhecidos em passos lentos vencem a ladeira
A velhice tem um cheiro particular que impregna as roupas
E que se mistura ao podre das frutas que as bocas sem dentes não roem
E ao bolor dos retratos e dos objetos-família
Que enfeitam a TV, a geladeira, o microondas
 
Olho: ali está a Dona Aurora varrendo as folhas da árvore roxa
E a turma do Tiago soltando pipa
E o Spike procurando comida na calçada
Eis o meu reality show particular
 
Este verão está mais quente? O clima está mudando?
Tanto faz... Aqui na minha rua, da janela do meu quarto
Me importa apenas o fato
De que eu tenho mudado

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