Para minha mãe no carnaval de 2019



O coração da minha mãe
agora hirto
outrora firme em
tantos caminhos
juntos
desde o primeiro grito.

Era dezembro e em meu braço apoiava
Seu pequeno peso
enquanto a imensa lua baiana à beira mar nos dizia
que não há mistério
porque tudo é mistério
e ríamos e filosofávamos sobre a preguiça praiera
e víamos os macacos colherem as mangas maduras
e os lagartos se arrastarem ao sol.

Ah minha mãe quantas nuvens cruzaram o céu sobre nossas cabeças
em jornadas em que me amparaste e em que eu te amparei.
Sim, menti por vezes para fugir de ti e reunir-me com meu bando
e mentiste que eu te enganava.
Mas, a ti voltava.
Sim, por vezes as durezas arderam como brasas.
Duras palavras que precisavas dizer para me domar
à pequena fera leonina que abrandaste.
Tu, ariana - fogo contra fogo.
Sim, o tempo que herdamos prestou para tributarmos à vida
e sentarmos à mesa e celebrarmos
e ver passar os dias, pessoas
e meus cabelos hoje brancos como os teus
e meus olhos da cor dos teus, que hoje choram...

Dói-me ter-te assim.
Vejo-te fechar os olhos e penso no que sonhas...
Estás traquinando em São Bento?
Ou em Barcelona garimpando badulaques nas Ramblas?
Ou sonhas com meu pai, em alguma Muzambinho remota
onde chegávamos à tarde, de trem,
e vinha meu avô Zé Barbosa de mula ao nosso encontro...
E quem, hoje, há de te receber, e em que gare?

.....

A matéria que se faz carne
em sua validade
é perfeita.
Mas vence o prazo
a força se desfaz
o brilho falha
o olhar se apaga.
Foi assim com teu corpo miudo, forte
combatente.
Ah, não poder tomar-te o braço para firmar esta travessia...
Ah minha mãe
eu fui e ficaste
me acenando o último aceno a desejar boa sorte.

Como vagos ficarão os dias
e maiores os sertões que partilhávamos.
Mais distantes as viagens que não fizemos...
O Egito que ficou nos livros que devoravas voraz
e que agora só em sonhos visitaremos em paises de nuvens...

Há, nesta miséria de dores, tantas riquezas.
Talvez, a maior, a liberdade que criaste para ti
urdida no mundo da solidão que não temias...
Embora a rodeássemos
era pouco para teu gostar superlativo.
Preferias as grandes mesas em que nos reunia
num breve momento em que enganavas o mistério que
de leve, pressentias.

Sim, o tic tac soava
o tempo escorria e os 84 galopava ao teu encontro.
Altiva, não te desviaste. Marchaste para ele.

Mas a liberdade se constrói em luta, e lutaste.
Ergueste-te dos preconceitos
e edificas-te outra mulher.
Surgiste melhor.
Maior.
Forjaste o exemplo.
Mostraste que é possível.

Ah filha de Davina e Sebastião
matriarca do reino dos Silvérios coloniais...
Deste base às minhas loucuras
e me permitiste voar.
Arrisquei-me a
longe de ti
tentar esquecer alguma improvável prisão.
Mas a ti voltei.
Homem.
Dei-te um neto
que a ti chegou.
Homem.

Partiste no carnaval
de que nunca gostamos...
Talvez porque não compreendíamos
duros que fomos para as levezas da matéria que se faz carne.

Abriste uma fenda.
Esticaste uma linha.
Reabriste o bau repleto de conchas e tesouros de piratas
que um dia, eu menino, apresentaste para mim
nas tardes de Lobato e bolinhos de chuva.
Esta é a tua herança
a única que valorizavas
no teu mundo de humildades e elegâncias.

Duro, não poder dizer-te
Algo que só aprenderei amanhã.
É não compartilhar a nova e íntima dúvida
amigos que fomos...
Mas por aqui persisto
um tanto mais penso
nesta estrada de pó e esperança...


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