O ponto de mutação é o momento certo para saltar

I

meus fantasmas urram no alto da igreja
é um suicídio
seus gritos racham as torres
eu me amedronto
no alto circulam pássaros
aguardam a queda de suas carcaças
aves se alimentam de sonhos
ou pesadelos
os berros aumentam a voltagem e sua fome
nervosa
uma velha senhora retira dos cabelos a chave
só ela nos pode libertar desta prisão (o medo, a morte)
ela roda a chave na ponta do cordão de ouro
vejo o rastro de luzes
e me amedronto
as sombras se agigantam e suas mãos
escurecem a pequena praça
é um sinal de adeus
goodbye yellow brick roads
é hora de recolher-se
é hora de encolher-se
à miserável solidão humana
cheia de pontas
cheia de espadas
cheia de cordas
e trapaças

com cabelos brancos encaramos o futuro?
mas que futuro há?

só há o presente
só existia o presente
só existirá o presente

II

o primeiro passo é o mais longo
entre a decisão e o movimento
há um silêncio de anos
o corpo vem atrás
escravo arrastando correntes e carne e músculo
escravo dócil
cheio de banzo
houve o tempo de sol e água
de pão e rosas
de vinho e beijos
mas ele não reclama
vem atrás largando coágulos, sangrando
nele não cabem todos os meus ais
sobram sonhos, almas demais
eu sou o criador destes extraordinários cenários
onde não chego
não alcanço
mas o corpo, manso
sem queixa
segue trôpego, bêbado, em balanço
só ele pisa no hoje
onde existe o presente

III

cruzei em frente à capelinha
nela, um dia, celebramos os vivos
e acendemos velas
e incensos
debaixo do céu imenso
fortes, a coragem corria nas veias
mistura de loucura e fé
de inocência e estupidez
caminhos de terra, pó e areia
barulhos de mato, bichos
cheiros no vento vindo de outros lugares
essências de marrakeshi, temperos do ceilão
onde foram? onde estão?
perdidos no presente
habitantes do ontem
deste nada que é o tempo
cão sem dono mordendo
trampolim para o fim
corda esticada
záz!

IV

chego no mar
a brancura plana do sal
aqui não se morre caindo
sua profundeza é outra
e adquire-se passo a passo
onda a onda
sentado, de pernas cruzadas
olhos fechados
ouço a música das sereias
e não sei se me perco por dentro
ou nesse dia horizontal
não tenho mastros onde me amarrar
nem cera para os ouvidos
e ouço a música silenciosa das sereias
e me amedronto
sinto-me pequeno diante do destino
e sei que o outro é a medida para a redução do espanto
não há mistério
pois tudo é mistério
aqui, caminha-se evitando queimar ao sol

proseguir acordado
loucura, demais

V

a violência afirma a supremacia das nossos dúvidas
somos frágeis diante das máquinas
máquinas fazem arte enquanto os homens calculam
pobre dos nossos deuses diante da força das engrenagens
parecem hippies envoltos em lata
retiramos energia da terra e por isso morreremos antes que ela se destrua
novidade que já não cabe nos jornais que ninguém mais lê
hoje alguém se casou, hoje alguém se separou
a calma é predicato das feras
o resto é instinto
ou lorex
a natureza fala
mas não ouvimos


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